No
enfrentamento ao tráfico de pessoas, tecer outra rede1
William
César de Andrade2
O
tráfico de pessoas é semelhante a uma teia/rede, composta por uma
infinidade de fios que se cruzam e se entrelaçam. Em cada um deles
está uma pessoa, que tem uma história, um lugar de onde partiu e
que agora vive marcada por uma trama muito maior do que tudo o que
tenha sonhado ou desejado.
No
tênue fio de um menino nascido no interior do Norte do Brasil há
uma infância marcada por tantas dificuldades que é difícil dizer
por qual razão o sonho de mudar a realidade foi crescendo, até se
tornar um desejo de sair daquele lugar, de arriscar tudo por algo
melhor. Uma de suas poucas alegrias era o futebol, onde o giro da
bola, o drible e a magia do gol, faziam sorrir e pensar que viver
valia a pena.
Noutro
fio, tão tênue quanto o primeiro está uma jovem mulher, bonita e
pobre ou como algumas vezes gostam de dizer, “com poucos recursos”.
À sua volta a realidade é de privação, senão da comida ou do
conforto, mas ainda assim, ausência de um futuro em que ela se veja
feliz. Ela teima em querer e buscar o que deveria ter por direito ou
por muito desejar.
O
fio de um homem adulto que vê a seu redor uma situação que lhe
causa dor e sofrimento. Forte para trabalhar, mas sem emprego ou sem
a possibilidade de viver dignamente com aquilo que lhe oferecem. O
pouco estudo não o intimida e está disposto a arriscar o que for
necessário para melhorar de vida.
Outro
fio, tecido num corpo que foi sendo modificado e agora já é difícil
afirmar se é ele ou ela, também habitam sonhos e desejos de uma
vida melhor, ainda que isso signifique uma quantidade a mais de
sacrifício pessoal e distanciamento de sua terra.
Em
cada um desses fios e nos tantos outros que fazem a teia/rede dos que
buscam, querem ou são levados a acreditar que fora de sua terra,
seja em outra região do país, seja em outro lugar do mundo estão
as respostas que procuram, Eles não percebem, mas para olhos
cobiçosos, eles são mercadoria humana, de um dos negócios mais
lucrativos que existe e que curiosamente poucas vezes dá errado, e
resulta em criminalização e efetiva punição.
Na
ponta desse negócio estão o aliciador e o aliciado. O primeiro sabe
que suas promessas e o mundo de oportunidades que apresenta não são
reais, pior ainda, sabe que a vida daquele que ele ou ela tenta
convencer nunca mais será a mesma se a ‘transação’ se
concretizar. De fato o destino daquela criança, homem, mulher ou
travesti quase nada significam, pois se trata apenas de um comércio
regido pelas inflexíveis regras da oferta e da procura. Pouco lhe
importa que isso seja tráfico de pessoas!
Para
o ou a aliciada a realidade é totalmente outra, pois é a
perspectiva de finalmente ter uma oportunidade que ocupa seus
pensamentos. Ele ou ela não se ilude facilmente, pois nada na vida
lhe chegou de modo fácil ou sem esforço. Mas o que leva um e outra
a seguir em frente é uma profunda esperança, em alguns casos bem
próxima ao desespero, de sair definitivamente de tudo o que o/a
oprime ou reduz. Seu horizonte é, portanto, muito maior do que a
realidade imediata oferece.
Os
fios dessa teia/rede estão interligados entre si e também com
realidades que englobam a sociedade e até mesmo o conjunto dos
países. O tráfico humano não acontece apenas porque foram feitas
escolhas erradas por algumas pessoas, fossem quais fossem suas
motivações; O tráfico também não é fruto apenas da ganância de
alguns em busca do lucro rápido e de uma ética em que os fins
justificam os meios. Há mais envolvidos nesse processo e, no mínimo,
isso significa a presença ou a ausência da sociedade e do estado.
A
sociedade, isso é, os grupos humanos e instituições nos quais
estavam inseridos cada um dos fios/pessoas traficadas tem a imensa
responsabilidade de cuidar dos seus, de ser uma presença integradora
e ao mesmo tempo estruturante das condições de vida. Quanto mais
precária e distante dos direitos fundamentais da pessoa humana, mais
a realidade irá propiciar a existência do tráfico e de pessoas que
venham a ser traficadas. É evidente que na sociedade brasileira
predominam conflitos de interesse entre os grupos e instituições
(tal como ocorre de modo geral nas sociedades complexas), mas isso
não nos isenta de responsabilidades e do desafio de viabilizar uma
vida social em que todos tenham seus direitos assegurados e
perspectivas de felicidade.
O
estado brasileiro é fruto da cidadania de seu povo e deve refletir
em sua legislação e atuação dos órgãos públicos o pleno
respeito à ordem democrática e, portanto, aos direitos inalienáveis
da pessoa humana e suas instituições representativas. Suas
políticas públicas devem assegurar o atendimento das necessidades
básicas de todos os que habitam no Brasil - e de seus filhos e
filhas que estão no exterior - e promover a superação de
desigualdades, bem como disponibilizar oportunidades, para todos, de
caminhos adequados à realização de suas potencialidades humanas.
Combater o tráfico de pessoas e todas as outras formas de violência
contra os direitos humanos e ilicitudes é tarefa do Estado e precisa
ser implementada a partir de políticas claramente definidas em
conformidade com a realidade atual.
Celebrar
o Dia Internacional do Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (23/09) é
sem dúvida afirmar a urgência de mudanças estruturais no que tange
ao desenvolvimento e à distribuição da riqueza. É superar
exclusões e assegurar uma vida com dignidade e possibilidade de sua
plena realização. Nesta direção estão algumas iniciativas e
alguns desafios:
- Promulgar e implementar o II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas;
- Estruturar em cada unidade da Federação Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas;
- Dar continuidade a instalação de Comitês de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, criando inclusive um Comitê Nacional, reforçando a presença da sociedade civil organizada.
- Construir um arcabouço normativo/legal que possibilite a efetiva criminalização dos agentes e demais pessoas envolvidas no Tráfico de Pessoas.
- Ampliar e/ou viabilizar iniciativas advindas da sociedade civil no campo da prevenção e da assistência às vítimas do tráfico de pessoas.
- Viabilizar processos de plena integração social às vítimas do tráfico de pessoas, evitando todo e qualquer processo de revitimização.
Brasília,
23 de setembro de 2012
1
Refletindo o Dia Internacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas.
2
Membro do Grupo de apoio ao Setor Mobilidade Humana da CNBB e
consultor do Instituo Migrações e Direitos Humanos (IMDH).
Artigo de ir. Eurides Alves de Oliveira (ICM) publicado pela Revista REMU
Tráfico de
Seres humanos – Um clamor de justiça!
Um grito do
Deus da Vida na vida das pessoas traficadas!
“Somos
chamadas a construir a vida,
abertas aos
apelos do Espírito que se manifestam,
nos sinais dos
tempos e apela a nossa presença,
lá onde a
vida está por um fio...
É preciso
recolher os pedaços de vida que ainda sobram
antes que se
percam”.
(Ana
Roy)
A Vida Religiosa Consagrada
Inserida junto aos Empobrecidos e empobrecidas assume a missão de
ser Boa Notícia do Evangelho aos pobres, pautando sua práxis na
mística da encarnação de Jesus de Nazaré que veio para que
todos/as tenham vida
e vida em abundancia (cf.
Jo, 10,10).
Procurando discernir em
cada momento histórico os apelos de Deus, vindos
dos clamores dos
pobres, que em cada época e contexto foram se apresentando com um
eloquente clamor por Vida e Libertação, foi assumindo espaços e
projetos concretos de
aproximação e compromissos, que expressem significativamente os
valores de sua vocação-missão
Hoje, num contexto de
“mudança de época’, marcada por velhas e novas pobrezas que
configuram cenários, rostos, sujeitos emergentes: Mulheres,
juventudes, crianças e adolescentes, povos Indígenas, afro
descendentes; idosos e doentes em situação de vulnerabilidade
social, exclusão, violência, migração forçada e tráfico
de pessoas.
Entendendo que a fidelidade
às origens
fundacionais, passa pela
vivência da Solidariedade na defesa e resgate da vida ameaçada,
sensibiliza e assume
com entranhas de misericórdia o ser presença de solidariedade
samaritana junto às pessoas, que em situação de vulnerabilidade e
risco pessoal e social têm sua dignidade ferida pela violência
institucionalizada das redes criminosas do tráfico humano.
O tráfico de
pessoas,
sobretudo de mulheres e crianças, que são as vítimas em potencial
deste ilícito negócio, é hoje um dos mais urgentes apelos
históricos para a Sociedade, e com especial convocação para a
Igreja e a Vida Religiosa cuja, missão de cuidar, proteger, defender
e promover a vida ameaçada é imperativo teológico.
Faz parte das afirmações fundamentais da teologia cristã recusar
qualquer tipo de violência como expressão da violação de direitos
humanos, a ela se opor, denunciá-la e contribuir para sua superação.
A Triste Realidade do
Tráfico de Pessoas
Como uma
transação comercial
iníqua que coloca as pessoas a serviço do lucro, ferindo gravemente
o ser humano no que tem de mais precioso: sua dignidade e liberdade
de filhos e filhas de Deus, sujeitos e cidadãos/ãs de direitos, o
Tráfico de Seres Humanos (TSH) é uma prática criminosa hedionda.
Uma rede
altamente lucrativa
que ocupa o terceiro lugar na economia mercadológica do crime
organizado, perdendo apenas para o tráfico de armas e drogas.
Atinge cerca de 2,5 milhões de vítimas, movimentando,
aproximadamente, 32 bilhões de dólares por ano. (UNODC
Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime).
Estima-se que 700 mil mulheres e crianças passam todos os anos pelas
fronteiras internacionais do tráfico humano. Isso sem contabilizar o
tráfico interno, que no nosso País e alarmante.
Atualmente,
esse crime está relacionado a práticas criminosas de violações
aos direitos humanos, para fins de exploração sexual comercial,
muitas vezes, ligadas a roteiros de turismo sexual, de mão-de-obra
escrava, e também, para remoção e venda e de órgãos. Configura
uma das formas mais explicitas da escravidão do século XXI. Uma das
piores afrontas à dignidade humana e uma das mais cruéis violações
dos direitos humanos. Vulnera e viola a dignidade das pessoas,
mercantilizando e ferindo seus corpos, matando seus sonhos e direito
de viver.
A
pobreza, o desemprego, bem como a ausência de educação e de acesso
aos recursos constituem as causas subjacentes ao Tráfico de Seres
Humanos. As mulheres são particularmente vulneráveis ao tráfico de
seres humanos devido à feminização da pobreza, à cultura de
discriminação e desigualdade entre homens e mulheres, à falta de
possibilidades de educação e de emprego, a cultura hedonista que
transforma o corpo da mulher em objeto de desejo e cobiça.
O
Brasil é País de origem, trânsito
e destino desta prática criminosa. É
responsável por 15% das pessoas exportadas da América Latina para a
Europa. (Fundação
de Helsinki pelos Direitos da pessoa humana.).
O mapa deste comércio tem
sempre uma constante: as pessoas traficadas são, na sua grande
maioria, mulheres e crianças, provenientes de regiões pobres e
levadas para as regiões ricas, uma vez que a mobilidade forçada
acontece em geral pela necessidade e o sonho de uma vida melhor.
Com a
escandalosa exclusão social, corrupção e a impunidade, estes
números estão crescendo, e neles há corpos, que gemem e gritam por
socorro. São milhares de mulheres, crianças e adolescentes
violentadas e torturadas física, moral e psicológicamente a cada
dia na roda viva do tráfico humano. Urge uma ação determinada e
firme de
todos. Das
autoridades competentes, para coibir, punir os que traficam. Do
estado e a sociedade no sentido de denunciar, informar, e educar;
assistir e proteger as vítimas, e acima de tudo de lutar pela
superação das causas geradoras e sustentadora desta iníqua
realidade.
A Política
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (2006) reconhece
o tráfico humano como um problema multidimensional que necessita de
ações articuladas com os diferentes setores e atores sociais. Traz
um conjunto de Diretrizes, princípios e ações norteadoras da
atuação do poder público no combate ao tráfico de pessoas. Seu
texto está estruturado em três eixos: prevenção,
repressão ao tráfico e responsabilização de seus autores e
atenção às vítimas.
Não obstante o reconhecimento do esforço realizado, esta tarefa
ainda está muito aquém da necessidade e urgência que apresenta.
Está em curso no
Ministério da Justiça a Construção do II PNETP – segundo Plano
Nacional l de enfrentamento ao tráfico de pessoas. Um convite a toda
a sociedade a se articular e participar com sugestões propositivas.
A
resposta da Vida Religiosa Consagrada:
O
clamor das mulheres, adolescentes e crianças traficadas, se impõem
hoje como um incessante
grito do Deus na
Vida. Pela força do Carisma a da missão de seguir Jesus no caminho
dos pobres, a Vida Religiosa Consagrada, num movimento dinâmico de
fé e solidariedade
é
convocada a viver
a Consagração-Missão nas periferias e fronteiras das causas
humanas, auscultando as interpelações de Deus no hoje da história.
Atentas e sensíveis a
esta “realidade-clamor”,
que convoca a todas e todos a estar de maneira estratégica ao lado
das pessoas indefesas, com uma práxis articulada de solidariedade e
cidadania a serviço da vida. Religiosas de várias Congregações
têm nas últimas décadas, assumido mundialmente, a luta pela
erradicação do tráfico de pessoas, como um campo de atuação
missionária. Um espaço e causa de fronteira na qual Deus a impele a
reagir e agir com solicitude e audácia profética.
Sensibilizar e
socializar informações sobre o Tráfico de Seres Humanos; capacitar
multiplicadores, multiplicadoras para ações educativas de prevenção
e assistência e intensificar a luta por políticas públicas
de enfrentamento desta realidade. É a tarefa que tem sido assumida
pela Rede um Grito pela Vida desde março de 2006.
A Rede Um grito pela
vida é Intercongregacional,
constituída por
religiosas de diversas Regionais e Congregações. Um
espaço de articulação e ação solidária da Vida Religiosa
Consagrada do Brasil. É
parte constitutiva da CRB Nacional. Aberta e atua de forma
descentralizada e articulada com as organizações e iniciativas
afins nas diversas localidades Estados e municípios. Integra a Rede
Talitakun, a Rede internacional da VR no enfrentamento ao Tráfico
Humano, coordenada pela UISG – União Internacional das superioras
Maiores.
Compreendendo que trabalhar
neste campo não é só uma opção, mas um “imperativo
bíblico-profético” D’aquele
que Vê, ouve e desce para libertar seus filhos e filhas da
escravidão’ (cf. Ex 3,7), D’aquele que enviou seu filho único
nascido de uma Mulher, para dar sua vida em resgate de outras vidas.
(cf. Gl 4,4), e das mulheres discípulas que com refinada astúcia,
cumplicidade e solicitude ao Espírito de Deus, foram protagonista no
resgate, defesa e promoção da vida umas das outras. As religiosas
que integram a Rede Um grito pela Vida, atuam nas diversas regiões
do país, articuladas em núcleos, integradas com as organizações
eclesiais e civis, fomentando, promovendo e/ou participando de
atividades e processos de prevenção, assistência as vítimas e
intervenção política que contribuam para instruir e
instrumentalizar a sociedade, e coibir o crescimento da inserção de
vítimas neste mercado do crime.
Dar um basta
ao Tráfico de Seres Humano, é tarefa de todos. Dever do Estado e
da sociedade.
A Rede um Grito
pela Vida é um caminho que nos permite ampliar alianças
intercongregacionais em prol da vida ameaçada e ferida das pessoas
traficadas. Caminho que nos possibilita ensaiar passos de encarnação
em novos espaços sociais, políticos e teológicos para incidirmos
nesse fenômeno, que cresce de maneira assustadora. Sutil e
vorazmente vai ceifando os sonhos e a vida das crianças e
adolescentes, juventudes e mulheres de nossas comunidades.
Agradecemos a
presença e participação de todas e todos que somam conosco nesta
luta e reafirmamos para toda a Vida Religiosa Consagrada o desejo de
vê-la sempre mais comprometida com esta e outras causas que ferem a
Vida em todas as suas dimensões. A REDE UM GRITO PELA VIDA é
um espaço aberto e espera encontrar nas Congregações, Regionais e
Organizações afins, adesão, apoio e empenho no enfrentamento desta
realidade de agressão aos Direitos Humanos e ao próprio Deus.
Gestos
simples desencadeiam ações de libertação: Colocar a questão em
pauta em todos os espaços possíveis: igrejas, escolas, hospitais,
inserções, obras e projetos sociais, em vista da formação da
consciência e ações de intervenção na realidade. Articular
forças – atuar em redes e parcerias com a sociedade civil e o
poder público. Somar na luta por políticas públicas para a
juventude e mulheres. Rezar e aprofundar esta realidade, à luz da
Palavra de Deus. Esta tem sido a ciranda do reagir e agir permanente
das religiosas da Rede um Grito pela Vida e da TALITAKUN nos diversos
núcleos e localidades do país e do mundo. Sensibilize-se,
informe-se e participe. Some nesta missão!
Advento 2011:
CAMPANHA CONTRA O TRÁFICO DE PESSOAS
promovida pela Ordem de Santo Agostinho
O tráfico de pessoas para exploração sexual
ou trabalho escravo é a nova forma de escravidão. Na maioria dos casos, a
pobreza extrema enseja esta situação, que gera um próspero mercado global,
superado apenas pelo tráfico de drogas e de armas.
Por este motivo, o Secretariado de Justiça e
Paz da Ordem propõe: ao menos um dia de Advento seja dedicado à
oração e reflexão sobre este tema, iluminados pela Palavra de Deus. Seguem
algumas sugestões; na 3ª feira da 2ª
semana de advento, 06-12, rezar a Oração da Tarde como segue.
TEXTOS SUGERIDOS ENTORNO
DA LEITURA BREVE
DOMINGO: O status
do imigrante ilegal se perpetua no tempo.
Reflexão: As pesadas dívidas
contraídas para poder pagar a passagem a um país de supostas novas
oportunidades, obriga a muitos irmãos nossos a realizar todo tipo de trabalho,
sem poder libertar-se. O fato de ser imigrante ilegal o afunda ainda mais nessa
situação de dependência, o qual é outra forma de escravidão.
Texto bíblico sugerido: Lv 25,38-43
38 Eu sou Javé, vosso Deus, que vos tirei do Egito para vos dar a terra de Canaã e ser o vosso Deus.
39 Se um irmão teu cai na miséria e se vende a ti, não o façais trabalhar como escravo: 40 que ele viva contigo como assalariado ou hóspede. Trabalhará contigo até o ano do jubileu, 41 e então ele e seus filhos ficarão livres para voltar
à própria família e recuperar a propriedade paterna. 42
Eles são
meus servos, que eu tirei do Egito, e não podem ser vendidos como escravos.
43 Não
o trates com dureza. Teme o seu Deus.
2ª FEIRA: É nossa responsabilidade gritar para romper o
círculo vicioso do tráfico de pessoas.
Reflexão: As sociedades
desenvolvidas aproveitam-se dos migrantes como mão-de-obra barata para realizar
serviços que eles não querem fazer, ou para outros serviços trabalhando como
escravos. Faltam vozes que despertem as consciências para dar um “chega” a este
processo.
Texto bíblico sugerido: Ne 5,1-12
1O povo pobre, sobretudo as mulheres, começaram a protestar fortemente contra
seus irmãos judeus. 2Uns diziam: «Fomos obrigados a vender os nossos filhos e filhas para comprar trigo, e assim comer e não morrer de fome». 3Outros diziam: «Passamos tanta fome que precisamos hipotecar nossos campos,
vinhas e casas para conseguir trigo». 4Outros ainda diziam: «Tivemos que pedir dinheiro emprestado, penhorando nossos campos e vinhas, para podermos pagar os impostos ao rei». 5Pois bem! Nós somos iguais aos
nossos irmãos, e nossos filhos são como os filhos deles! Apesar disso, somos obrigados a sujeitar nossos filhos
e filhas à escravidão. E algumas de nossas filhas já foram reduzidas à escravidão, e não podemos fazer nada, pois
nossos campos e vinhas já pertencem a outros».
6Fiquei indignado ao ouvir as queixas e o que estava acontecendo. 7Não
me contive e repreendi
o pessoal importante e os chefes, dizendo: «Vocês estão agindo como usurários em relação a seus irmãos!» Convoquei contra eles uma assembleia geral, 8e
lhes disse: «Nós, à medida que pudermos, resgatamos nossos irmãos judeus que se tinham vendido aos estrangeiros. Vocês,
porém, vendem seus irmãos para que os resgatemos». Eles não
acharam resposta e ficaram calados. 9Eu continuei:
«O que vocês fazem não está certo. Vocês não querem agir conforme o temor
de Deus, para que as nações inimigas não caçoem de nós? 10 Eu, meus irmãos e meus ajudantes também emprestamos dinheiro e trigo
para essas pessoas. Pois bem! Vamos perdoar essa dívida. 11 Devolvam hoje mesmo seus campos, vinhas, olivais e casas. Perdoem também o empréstimo em dinheiro, trigo, vinho e azeite, que vocês tomaram deles». 12 Eles disseram:
«Vamos devolver tudo, sem cobrar nada. Faremos
como você propôs». Então chamei os sacerdotes e, na presença destes, fiz com que eles jurassem manter a palavra.
Reflexão: Em muitos casos, o
migrante sente-se perdido na grande cidade. É um cidadão de segunda classe. Se
por um lado o trabalho o dignificaria, é justamente o tipo de trabalho que o
faz sentir-se assim, não só pelo trabalho como tal, mas pelo desamparo das leis
sociais e trabalhistas a que muitas vezes é submetido.
Texto bíblico sugerido: Jó 7,1-4
1O homem vive na terra cumprindo um serviço militar, e seus dias são como os do diarista: 2 tal e qual um escravo, ele suspira pela sombra e, como o diarista, espera pelo seu salário. 3Assim, a minha herança são meses de ilusão,
e a mim couberam noites de fadiga.
4Ao me deitar,
fico pensando: ‘Quando
me levantarei?’ A noite é muito longa, e me canso de ficar rolando na cama até a aurora.
4ª
FEIRA: Compra
e venda de mulheres, prostituição.
Reflexão:
A
ampla demanda de “clientes” torna a prostituição “rentável”. Aos poucos elas
vão perdendo sua dignidade humana; e nós, a consciência de que são nossas irmãs.
Texto bíblico sugerido: Ex 21,7-11
7 Se alguém vender a filha
como escrava, esta não sairá como saem
os escravos. 8 Se ela desagradar ao patrão, a quem estava destinada, este deixará que a resgatem; não poderá vendê-la a estrangeiros, usando
de fraude para com ela. 9 Se o patrão destinar a escrava para seu filho, este a tratará conforme o direito
das filhas. 10 Se o patrão tomar uma nova mulher, ele não privará a primeira
de comida, roupa e direitos conjugais. 11 Se ele não lhe der
três coisas, ela pode ir embora sem pagar nada.
5ª
FEIRA:
OS migrantes são tratados como cidadãos de segunda classe.
Reflexão: Viver em terra
estranha às vezes é também sinônimo de viver em cultura diferente. As
dificuldades são muitas no tocante à moradia, saúde, trabalho, escola, direito
à expressão... Isso quando não são objeto de burla e desprezo, violência. E nós
esquecemos que também fomos migrantes.
Texto bíblico sugerido: Lv 19,33-36
33 Quando um imigrante habitar convosco
no país, não o oprimais. 34 O imigrante será para vós um concidadão: vós o amareis como a vós mesmos, porque vós fostes imigrantes na terra do Egito. Eu sou Javé, o vosso Deus.
35 Não cometais injustiças no julgamento, nem cometais injustiças no peso
e nas medidas. 36 Tende balanças, pesos e medidas exatas. Eu sou Javé, o vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito.
6ª
FEIRA:
A sociedade se acostumou a se beneficiar da exploração de pessoas.
Reflexão: Os serviços
realizados por estas pessoas exploradas estão incorporados a nossa cultura de
tal maneira que nos resulta “normal”. Teoricamente rejeitamos os abusos
cometidos, mas na prática pouco ou nada fazemos para inverter esta situação.
Texto bíblico sugerido: At 16,16-21
16 Estávamos indo para a oração, quando veio ao nosso encontro uma jovem escrava, que estava possuída por um espírito
de adivinhação; fazia oráculos e obtinha muito lucro para seus patrões.
17 Ela começou
a seguir Paulo e a nós,
gritando: «Esses homens são servos do Deus Altíssimo e vos anunciam o caminho
da salvação.» 18 Isso aconteceu durante muitos dias. Por fim,
não suportando mais a situação, Paulo voltou-se e disse ao espírito: «Eu te ordeno em nome de Jesus Cristo: sai dessa mulher!» E o espírito saiu no mesmo instante.
19 Os patrões da jovem, vendo que tinham perdido a esperança
de lucros, agarraram Paulo e Silas e os arrastaram à praça principal, diante dos chefes da cidade. 20 Apresentaram os dois aos magistrados, e disseram: «Estes homens estão provocando desordem em nossa cidade;
sãojudeus21
e pregam costumes que a nós, romanos,
não é permitido aceitar nem seguir.»
SÁBADO: Deixar de ser escravo não é um
desejo, é um direito.
Reflexão: Viver explorado,
escravizado não elimina a dignidade da pessoa, de ser alguém criado, amado e
resgatado por Deus. Ser filho/a de Deus gera o direito a serem resgatados pelos
seus irmãos que também chamam a Deus de Pai.
Texto bíblico sugerido: Lv 25,47-49.55
47 Se o imigrante ou hóspede que vive convosco ficar rico, e o seu irmão,
que vive junto dele, cair
na miséria e se vender ao imigrante, hóspede ou descendente da família
do imigrante, 48 mesmo depois de vendido terá direito a resgate.
Será resgatado por um de seus irmãos, 49 ou por seu tio paterno, por seu primo, por qualquer um dos membros da sua família, ou poderá resgatar a si mesmo,
se conseguir recursos para isso.55
Isso porque os filhos
de Israel são meus servos:
são servos meus que tirei do Egito.
Eu sou Javé, o vosso Deus.
VÉSPERAS DA 2ª
FEIRA DA II SEMANA DE ADVENTO
|
1. MOTIVAÇÃO
Advento é tempo de esperança.
Esperamos a vinda de Jesus de encontro a cada pessoa para renová-la e
transformá-la. Esta transformação corresponde às aspirações mais nobres das
pessoas. A Declaração dos Direitos Humanos o expressa assim:
“Todas as pessoas
nascem livres e iguais em dignidade e direitos, e dotados de consciência; como
tais, devem relacionar-se fraternalmente entre si. Ninguém estará submetido à
escravidão nem a servidão de qualquer tipo. A escravidão e a trata de escravos
são proibidas em todas suas expressões”.
“Tudo aquilo
que ofende à dignidade humana, como seja as condições infra-humanas de vida, as
detenções arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, a trata de
pessoas e de jovens; ou as situações laborais degradantes que reduzem o
trabalhador a um mero instrumento de lucro, sem respeito a sua dignidade e
responsabilidade: estas e outras práticas parecidas são em si mesmas
infamantes, degradam a civilização humana, desonram mais a seus autores
que suas vítimas, e contrariam
frontalmente a honra devida ao Criador”.
Concílio Vaticano II, GS 27
Seguindo os passos de Nosso Pai Sto.
Agostinho, que lutou contra a escravidão, rezemos estas Vésperas pelos que
negociam com a vida e dignidade dos outros, pelas suas vítimas, e por todos
aqueles que, desde a política, a justiça, lutam para ver-nos livres desta lacra
social.
2. COMO PROCEDER
|
|
O hino
é uma das canções mais conhecidas; se não puder ser cantado, pode ser rezado –
Os salmos são do dia; um dos salmos
pode ser substituído pelo Sl 36 das Matinas – As antífonas podem ser substituídas pelos textos de Sto. Agostinho – O
texto da leitura breve pode ser
substituído por um dos que apresentamos.
HINO
A verdade vos libertará, libertará (bis)
1.
Não
temais os que matam o corpo, não temais os que armam ciladas.
Não temais os que vos
caluniam nem aqueles que portam espadas.
Não temais os que
tudo deturpam pra não ver a justiça vencer.
[:Tende medo somente
do medo, de quem mente pra sobreviver:].
2.
Não
temais os que vos ameaçam, com a morte ou difamação,
Não temais os poderes
que passam, eles tremem de armas na mão.
Não temais os que
ditam as regras na certeza de nunca perder.
[:Tende medo somente
do medo, de quem cala ou finge não ver:].
3.
Não
temais os que gritam nas praças que está tudo perfeito e correto.
Não temais os que
afirmam de graça que vós nada trazeis de concreto.
Não temais o papel de
profeta, que o papel de profeta é falar.
[:Tende medo somente
do medo, de quem acha melhor não cantar:].
SALMODIA
Salmo 1º
Rezamos este salmo
pedindo por aqueles que têm condições de eliminar esta vergonha da humanidade.
Antífona 1ª: “Em Hipona a Real, pela misericórdia de Deus, a igreja
para libertar os infelizes que sofrem escravidão” (Carta 10*,8).
Salmo 2º
Pedimos pelas vítimas
do tráfico de escravos nas suas diversas modalidades, para que, com nossa
ajuda, respeito e atenção, possam sarar as feridas que hajam sofrido.
Antífona 2ª: “É impossível conter as lágrimas depois de saber as
táticas de sedução e violência usada pelos traficantes (gálatas)” (Carta 10*,7).
Salmo 3º
Ao rezar este salmo,
pedimos pela conversão daqueles que se beneficiam destes negócios indignos, e
dos que os apóiam.
Antífona 3ª:“A estes traficantes não de animais, mas de gente, quem
lhes opõe resistência?” (Carta 10*,5).
TREXTOS
BÍBLICOS (escolher apenas um)
Ex
22,20-26
Disse
Javé a Moisés: Estas são as normas que hás de dar:
20 Não explores o imigrante nem o oprimas, porque vós fostes imigrantes no Egito.21
Não maltrates a viúva nem o órfão, 22 porque, se tu os maltratares e eles clamarem a mim, eu escutarei o clamor deles. 23
Minha ira então se inflamará,
e eu vos farei perecer pela espada:
vossas mulheres ficarão viúvas e vossos filhos ficarão órfãos.
24 Se emprestares dinheiro a alguém
do meu povo, a um pobre que vive ao teu lado, não te comportarás como agiota: vós não deveis cobrar juros.
25 Se tomares como penhor o manto do teu próximo, deverás devolvê-lo antes
do pôr-do-sol, 26 porque ele se cobre com o manto, que é a veste do seu corpo; como iria cobrir-se ao dormir? Caso contrário, se ele clamar a mim, eu o ouvirei, porque sou compassivo.
Dt 10,12-21
12 E agora, Israel, o que é que Javé teu Deus te pede? Somente isto: que temas a Javé teu Deus. Que andes em teus caminhos e o ames. Que sirvas Javé teu Deus
com todo o teu coração e com toda a tua alma. 13 E que observes os mandamentos de Javé e os estatutos que eu hoje te ordeno, para o seu bem.
14 Presta
atenção! É a Javé
teu Deus que pertencem os céus, os mais altos céus, a terra e tudo o que nela existe. 15
Apesar disso, foi somente com os
vossos antepassados que Javé se ligou
para amá-los. E depois deles, escolheu dentre todos os povos
a descendência deles, que sois vós, como hoje se vê. 16 Circuncidai, portanto, o coração, e nunca mais tenhais cabeça dura, 17 porque Javé teu Deus
é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o Deus grande, valente e terrível, que não faz diferença entre as
pessoas e não aceita suborno. 18 Ele faz justiça ao órfão
e à viúva e ama o imigrante, dando-lhe pão e roupa. 19 Portanto, amai o imigrante, porque vós fostes imigrantes no Egito. 20 Teme e serve a Javé
teu Deus, apega-te a ele e jura pelo seu nome. 21 É a ele que deves louvar, porque ele é o teu Deus. Ele fez em favor de ti essas coisas grandes e terríveis,
que viste com os teus próprios olhos.
REFLEXÃO
O
horror da escravidão voltou à tona. Comprar um ser humano é mais barato que
nunca
Cada segundo, cada hora, pessoas de
todas as idades, sobretudo mulheres, são vendidas, usadas e humilhadas contra
sua vontade. São vítimas da escravidão.
No século XXI, quem diria, enquanto
a humanidade atingiu um alto índice de desenvolvimento tecnológico, o lógico
seria que tivéssemos liberdade, paz, e respeito aos direitos humanos. Mas,
lamentavelmente, não é assim: a crueldade, o egoísmo, a falta de respeito pelas
pessoas, fazem com que haja mais escravos que os que vieram da África quatro
séculos atrás. O horror da escravidão voltou. Comprar um ser humano é mais
barato que nunca.
A trata de pessoas é uma grande
atividade econômica e em amplo crescimento; 2,8 milhões e pessoas são
traficadas anualmente, das quais 1,5 são crianças. Carregados através das
fronteiras, cruzando continentes, sozinhos ou em grupos. Vivem em situação de
medo permanente, enquanto seus captores vigiam seus movimentos. São tratados
pior que ao gado, pois a este ao menos se alimenta e trata bem. Estas pessoas
não existem como tais, mas são pessoas. São mães, filhos, pais, e sonham com
uma vida melhor, em liberdade.
A maioria das pessoas não percebe a
magnitude do problema do “tráfico de pessoas”; acham que isso não existe. Todos
podem colocar nosso grão de areia na erradicação deste problema: oferecendo
nosso apoio aos refugiados, sim; ignorar o problema, não.
PRECES DENÚNCIA
1.
Queremos
denunciar a injustiça de nossa sociedade que permite novas formas de
escravidão, ignorando a dignidade das pessoas, e como tais devem ser tratadas
sempre.
Para que os legisladores de nossos países defendam nas
suas leis a dignidade das pessoas, especialmente dos mais fracos, impedindo que
estes sejam agredidos, comercializados, rezemos ao Senhor.
2.
Queremos
insistir na urgente necessidade de implantar na nossa cultura os valores
humanos e cristãos, como a dignidade inegociável de toda pessoa e o respeito
aos direitos humanos; e empenhar todos os meios necessários para que estas
condutas degradantes sejam aborrecidas e reprovadas por todos.
Para que
olhemos as pessoas como Deus as olha, e as tratemos com respeito a sua dignidade,
com amor, respeito, compaixão pela dor sofrida, rejeitando todo tipo de
injustiça, roguemos ao senhor.
3.
Infelizmente
não se está fazendo tudo que se deveria fazer política e juridicamente para
eliminar esta praga e refletir sobre o que ela significa.
Para que sejamos
conscientes das causas mais profundas que “demandam” o mercado e a escravidão
humana; para que promovamos uma civilização mais solidária, que enseje mais
vida e bem-estar parta todos; para que façamos acontecer tudo aquilo que sonhamos aconteça neste Natal, rezemos ao
Senhor.
4.
Raramente
paramos e analisamos as circunstancias que envolvem o tráfico de pessoas.
Raramente analisamos a maneira como vemos e tratamos à mulher.
Para que, seja lá onde for que estivermos – escola,
universidade, trabalho – levemos um estilo de vida austero e ecológico,
respeitoso e solidário para com todos, conhecidos ou não, seguindo os
ensinamentos de Jesus, roguemos...
5.
Temos
que lamentar que, via de regra, os lugares de origem destas vítimas não fizeram
tudo que deveriam fazer seja para prevenir este fato, seja para reabilitar as
suas vitimas.
Pelas
instituições internacionais que têm mais recursos para lutar contra esta lacra
social, para que façam o possível para que os países menos desenvolvidos tenham
uma política que evite esta “migração” desumana, roguemos...
MENAGEM-COMPROMISSO
FINAL
A vocês, mulheres que sofreis a
degradação da exploração, animamos a tirar forças da debilidade. Sua denúncia e
testemunho poderão conseguir que outras pessoas recuperem sua dignidade
perdida.
A vocês, crianças, que são vendidos
como mercadoria de trabalho ou prazer, pedimos desculpas por não haver-lhes
oferecido um mundo mais limpo, mais puro. Todavia, cremos ser possível a
recuperação.
A vocês, homens, que arriscam a vida
para manter sua esposa e filhos; que caem nas redes das máfias que exploram
seus desejos de liberdade e trabalho. Que este esforço sirva para que outros
não sejam iludidos, e os exploradores sejam um dia castigados.
Contem conosco! Com nosso apoio
queremos contribuir à denúncia profética das estruturas de pecado e de morte
que geraram tudo isto.
Finalmente, queremos agradecer o
esforço silencioso e corajoso de pessoas particulares, organizações eclesiais,
congregações religiosas. Estão seguindo o exemplo de Jesus: servir aos pobres,
fazer sua a causa dos mais fracos, e proclamar que todos nascemos para viver
dignamente como filhos de Deus.
V Encontro Nacional da Rede Um Grito pela Vida
Goiânia, 14 de outubro de 2011
Reflexão de Élio Estanislau Gasda
Professor de Ética e Teologia na FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Belo Horizonte). Doutor em Teologia pela Universidade Pontifícia de Madri. Publicou: Fe cristiana y sentido del trabajo. Madrid: Paulus, 2011; O sentido do trabalho no capitalismo global: atualidade da Doutrina Social da Igreja. Paulinas, 2011. gasdasj@hotmail.com
TRÁFICO DE PESSOAS E TRABALHO ESCRAVO:
LUGAR TEOLÓGICO, CLAMOR ÉTICO, MISSÃO DA
IGREJA
A reflexão está organizada em três partes interconectadas. A primeira destaca as origens teológicas do problema em questão: as estruturas de pecado e a idolatria. A segunda aborda as origens da ética cristã: o clamor das vítimas do pecado do mundo. A última parte reflete os aspectos fundamentais da missão da Igreja no combate ao tráfico de pessoas.
RAÍZES TEOLÓGICAS
Consequências de um sistema estruturado no pecado
O tráfico de pessoas e o trabalho escravo constituiu o cerne de sofisticados sistemas econômicos ocidentais pré-capitalistas. A civilização babilônica, greco-romana e grandes áreas do Oriente, eram sistemas de produção escravagista. Adentrando no século XIX, enclaves econômicos coloniais espalhados por todo o mundo continuaram sustentando a escravidão e tráfico de pessoas, a pior da história. Atualmente, são um espelho das mazelas do capitalismo global. Sem uma leitura política da realidade é impossível uma aproximação coerente a esta tragédia. Portanto, não é uma questão que se esgota em si mesma. Está estreitamente conectado com mecanismos globais derivados de uma estrutura política e econômica alicerçada na injustiça e na violência.
Uma das muitas formas de violência contra os indefesos. Este ano comemoramos o aniversário dos 40 anos do Sínodo dos bispos de 1971, A Justiça no mundo1. Nele, a Igreja chamava a atenção para as contradições internas desta civilização. “É preciso superar os sistemas e mecanismos injustos e internacionais de dominação”. Na mesma linha, a Constituição pastoral Gaudium et spes do Concílio Vaticano II denunciava que o Luxo pulula junto à miséria (GS 63, 3).
A situação de injustiça no mundo é definida como situação de pecado. O documento de Medellín (1968) afirma que “ao falar de uma situação de injustiça nos referimos às realidades que expressam uma situação de pecado” (Medellín, doc. Paz, 1). Para os bispos latinoamericanos reunidos em Puebla, estamos diante de um mecanismo perverso que provoca e sustenta uma situação de pecado (Puebla, 1135). Para João Pablo II, o mundo contemporâneo vive sob o domínio da injustiça e de um sistema alicerçado em “estruturas de pecado” (Solicitudo rei socialis, 36)2. As causas das desigualdades sociais e do aumento da pobreza devem ser buscadas nos “mecanismos econômicos, financeiros e sociais” (SRS, 16). Tais estruturas estão ainda mais reforçadas, agravando ainda mais a dramática situação dos mais pobres (CA, 35, 56). Não é objetivo de o capitalismo satisfazer as necessidades humanas mais elementares e resolver o problema da pobreza (CA, 40).
O pecado do mundo (Jo 1,29; 15,18), encarnado em tais estruturas, rompe com qualquer possibilidade de humanização: Há uma elite triunfante e exibicionista, que trafega em seus jatinhos, banqueiros, empresários, senhores da mídia que deram as costas aos milhares de seres humanos empurrados para os vales da morte do capitalismo. Aí se escondem os crimes mais cruéis contra a vida humana, como a escravidão e o trafico de seres humanos. O capitalismo sustenta esta máquina de pilhagem de miseráveis com a cumplicidade da sociedade e do sistema financeiro. Ao aceitar o dinheiro do tráfico, os bancos se omitem ante o terror imposto a pessoas indefesas. É dinheiro sujo procedente de bordéis, masmorras, carvoarias, barracões. São dólares de sangue extraído destes reféns dos criminosos vorazes cujo poder está longe de esgotar-se.
O capitalismo serve-se dos miseráveis para aumentar seu poder, transformando milhões de seres humanos em mercadoria. Em nome do lucro, se negociam pessoas. É o principio da acumulação ilimitada a todo vapor. Quanto mais os traficantes enriquecem, mais se empenham em traficar, mais querem aumentar suas contas na Suíça, Bahamas ou Caribe.
São pecados gerados pela idolatria
Na raiz do tráfico de seres humanos e do trabalho escravo está a idolatria. O pecado mortal do capitalismo não é o ateísmo, mas a idolatria. A civilização do século XXI é profundamente idolátrica seja na economia, na cultura e na política: “A riqueza absolutizada é obstáculo à verdadeira liberdade” (Puebla, 494). Paul Lafargue, genro de Marx, escrevia num panfleto de 1886 titulado A religião do capitalismo, que “o capital é o Deus que todos conhecem, vêem, tocam, cheiram, provam; existe para todos os nossos sentidos. É o deus que ainda não encontrou ateus"3.
Na Bíblia, a idolatria aparece como pecado originante de outros pecados4. Javé exige desprezo e rejeição radical de outros deuses - élohim ajerim (cf. Ex 20,3-4; 34,13; Dt 5,7-8; 27,15). Adorar realidades criadas no lugar de Deus (cf. Is 10,11; Jr 9,13ss.; Ez 8,17ss.) é o mais grave dos pecados e a maior das imbecilidades (Os 8,4ss; 13, 2; Jr 14,22; Is 40, 12ss, etc.).
Para Jesus, o ídolo é uma realidade histórica concreta, o dinheiro (Mt 6, 24; Lc 16,13). Converter o dinheiro em poder supremo significa negar radicalmente ao Deus da vida (Col 3,5). Para São Paulo, por trás da idolatria se esconde a opressão da verdade e a ocultação da injustiça. O pecado da idolatria traz conseqüências imediatas sobre o próximo: perversidade, injustiça, ganância, maldade, assassinato (Rom 1,18ss). Na raiz do tráfico de pessoas está a idolatria do dinheiro (1Tm 6,10; Ef 5, 5). Para João Paulo II, por traz dos mecanismos perversos se escondem verdadeiras formas de idolatria: dinheiro, ideologia, classe social, tecnologia (SRS 37). Aparecida denuncia a idolatria do dinheiro como a primeira causa da violência (Aparecida, 78).
Portanto, o tráfico de pessoas e o trabalho escravo não podem ser considerados apenas um dano colateral de um sistema econômico, ou um problema político. A idolatria os converte em questão religiosa: “a adoração do não-adorável, e a absolutização do relativo, leva à violação do mais íntimo da pessoa humana. Eis a palavra libertadora por excelência: ao Senhor Deus adorarás e só a Ele darás culto (Mt 4,10)” (Puebla, 493).
Enfrentar, denunciar e combater o tráfico de pessoas é confessar a fé no verdadeiro Deus. A mensagem de Jesus é essencialmente uma mensagem de libertação: “A queda dos ídolos restitui ao homem seu campo de liberdade essencial” (Puebla 491). Se o capitalismo fosse ateu, talvez a fé cristã não tivesse tanta força subversiva. A fé no Deus de Jesus exige confessar o ateísmo diante dos ídolos do capital (cf. Mt 6, 24=Lc 16, 13).
A ÉTICA
As vítimas, primeiras destinatárias do ethos cristão
É um problema ético antigo. O povo de Israel sentiu em sua própria carne o que era trabalhar e viver desterrado (Gn 12, 1-10; 26,1-6). José, filho de Jacó, aparece na Bíblia como primeira vítima do tráfico de pessoas (Gn 37,13-28). Salvo da morte por Rubem, seu irmão mais velho, pois José “é nosso irmão, nossa carne”. Era mais vantajoso vendê-lo do que matá-lo e ocultar seu sangue para abafar a justiça. Foi abandonado em uma cisterna vazia, encontrado por comerciantes madianitas que logo o venderam por vinte ciclos e levado ao Egito para trabalhar como escravo. Quando o irmão mais velho volta à cisterna “José não estava mais lá. Rasgou suas vestes e voltou para seus irmãos dizendo: o menino não está mais lá! E eu, para onde irei?” (Gn 37, 30). Rubem fracassou em sua tentativa de salvar seu irmão. E fica indignado ante a indiferença dos demais irmãos diante do desaparecimento do irmão mais jovem.
Mais tarde, os irmãos assumem sua culpa pelo ato e sua insensibilidade diante dos gritos desesperados do irmão clamando por não ser abandonado (cf. Gn 42, 21-22). Este relato bíblico sobre tráfico de pessoas revela que na fé cristã, a ética somente começa quando junto ao “eu” aparece um “tu”. Quando digo para outra pessoa “quero que tua liberdade e autonomia sejam”. O rosto do outro, como diz Lévinas, me solicita, me interpela. Para o cristão, a responsabilidade pela vítima se converte em imperativo ético: “amo-te como a mim mesmo”. Este “te” são todos os outros, sejam eles anônimos ou não. Por isso que as vítimas desconhecidas e anônimas do tráfico de pessoas e do trabalho escravo irrompem na consciência humana clamando por uma resposta ética e de justiça. Esta é a síntese de toda a Lei e dos Profetas:
“Tudo aquilo que quereis que os homens façam a vós, fazei-o vós mesmos a eles” (Mt 7,12; Lc 6,31).
O sofrimento e humilhação das vítimas é a chave de leitura para refletir e agir. Fortemente alicerçada no pólo do “eu” – no individualismo hedonista - nossa sociedade se caracteriza por uma radical aversão ao sofrimento, ao fracasso e à humilhação. Chegamos ao século XXI com níveis críticos de egoísmo e indiferença para com a dor do outro. Diante de tanta indiferença, o cristão tem uma tarefa crucial: revelar ao mundo que o outro existe e que seu sofrimento é real! A ética cristã é essencialmente profética, pois assim fizeram os profetas:
- “Ai daquele que constrói seu palácio desprezando a justiça, e amontoa seus andares a despeito do direito; que obrigam os outros a trabalhar de graça, sem pagar-lhes salário (...). Só tens olhos e coração para o lucro, para derramar sangue do inocente, para agir com brutalidade e selvageria” (Jr 22, 13.17).
- “Vendem o justo por dinheiro e o indigente por um par de sandálias” (Am 2,6).
- “Lançaram sortes sobre o meu povo; deram um menino por uma meretriz, e venderam uma menina por vinho, para beberem (Joel 4,3).
- Para o profeta Ezequial, o trafico de escravos praticado pelo príncipe de Tiro com as nações vizinhas (Ez 27, 12-13) era uma prática de idolatria abominável (Ez 28, 6).
Em segundo lugar, o ethos cristão é mistagógico. No cristianismo a condição humana é lugar de encontro com Deus. A condição humana das vítimas é de sofrimento e de humilhação. O cristão é chamado a decidir-se diante da realidade do sofrimento da mesma forma como se posiciona seu Deus, ou seja, junto do sofredor. “Ele foi desprezado e rejeitado pelos outros... como alguém de quem os outros escondem sua face” (Is 53,1). A rejeição sofrida por Jesus é expressão máxima de um Deus que se deixa crucificar e rejeitar com os desprezados e humilhados. È sua resposta divina à crueldade e á violência infligida contra seus filhos e filhas.
O sofrimento das vítimas irrompe como lugar ético-teológico. Confessamos e professamos um Deus crucificado e solidário com todos os rejeitados. A cruz exposta em nossos altares é o maior dos símbolos de protesto: Ali também estão os indefesos, os torturados e escravizados. È Cristo identificado e crucificado com eles (Mt 25,31-46). Portanto, o amor primordial a eles é o grande sinal de incorporação do cristão ao crucificado (cf. Jo 13,34-5).
O sofrimento das vítimas é lugar privilegiado de experiência de Deus e da decisão ética: Conhecer-me é fazer justiça ao indefeso (Jr 22,15-17). A teologia desemboca na ética da compaixão indignada e libertadora. A consciência cristã não pode sentir-se livre enquanto existirem escravos. O ethos cristão coloca o cristão junto com todas as vítimas do tráfico. O cristão está sendo vendido em cada ser humano traficado. O ethos cristão coloca o cristão junto com cada trabalhador e trabalhadora escravizada. O cristão está sendo explorado em cada pessoa explorada, espoliada. A violência sobre as vítimas dói em mim: amar as vítimas do tráfico como a nós mesmos (Lv 19, 33-34).
Alguém disse algo semelhante: “Se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros. Acima de tudo procurem sentir no mais profundo de vocês qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo” (Che Guevara).
A AÇÃO DA IGREJA
Cuidar das pessoas: Missão recebida de Jesus
A razão de ser e de agir da Igreja está fundamentada na missão e na pessoa de Jesus. É missão da Igreja colocar-se a serviço da vida. "A Igreja recebeu de Jesus a missão de cuidar do ser humano. Ao se fazer ser humano, Jesus revela o valor sagrado da pessoa. Tal missão pertence ao mais profundo de sua consciência evangélica" (CNBB, Doc.40, 203-204). Faz parte da identidade eclesial contribuir “com a dignificação de todos os seres humanos, juntamente com demais pessoas e instituições que trabalham pela mesma causa” (Aparecida, 398). A ação pastoral junto ao tráfico de pessoas e do trabalho escravo é expressão visível e privilegiada do ministério da evangelização. É a expressão concreta de uma Igreja consciente da sua missão de servidora do Evangelho. Não pode ser tratada como uma nota de rodapé.
Para cumprir tão sublime missão, a Igreja apóia-se no agir de Deus. No AT, Deus se revela como um libertador dos prisioneiros e humilhados. O modo de ser e de agir de Deus é de libertação. Deus quer um povo livre, solidário, irmanando, sem exploração. O ser e agir de Jesus levou a plenitude o ser e agir de Deus. Sua missão: proporcionar vida em abundância para todos (Jo 10, 10), mas principalmente aos mais pobres e abandonados (Lc 4, 14-21).
Do jeito de Jesus
O jeito de Jesus é a melhor atitude da Igreja diante das multidões atormentadas pela perversidade dos traficantes e dos capatazes. Duas atitudes: ação imediata e indignação profética. De um lado, Jesus trata de agir, pois ver o próximo humilhado lhe é intolerável (cf. Mt 8,14; Mc 3,1-4; Lc 13,10-13; Jo 11,35). De outro, indignação ante a indiferença e dureza de coração (cf. Mc 3,5; 10,5; Lc 13, 15-16). Na cruz, seu sofrimento não está centrado sobre si mesmo, pois ao assumir a figura do servo sofredor (Mt 8,17), assume a dor e a humilhação do povo como suas (Mt 11,28; 25,31-46).
Se Jesus identifica-se com cada encarcerado e humilhado e nas vítimas do tráfico de pessoas, a Igreja deve ter o mesmo sentimento. O problema do tráfico não é somente um problema sociológico, é, também, eclesiológico. A Igreja é ofendida e agredida em cada vítima do tráfico. É lugar teológico, onde o Deus de Jesus confessado pela Igreja, se manifesta como impotente, débil, desprezado. Deus que faz do direito do oprimido seu próprio direito e causa. Para a Igreja, assim como para Jesus, não há nada mais valioso que a vida humana (Mt 5,23-24; 6,26-30; Mc 2,23-27; 12,33). É um problema de Deus, é um problema da Igreja, porque nas vítimas está em jogo a causa do Deus revelado em Jesus: Eu e o Pai somos Um (Jo 10, 30). E tudo o que a Igreja fizer a um destes pequenos, estará fazendo a Jesus (Mt 25, 31-46).
O compromisso da Igreja é o mesmo de Jesus: resgatar a vida e dignidade dos humilhados (Puebla, 114). Agir como Deus, defendê-los e amá-los (Puebla 1.142). O agir de Deus é amor. Presente nos humilhados, Deus espera da Igreja uma resposta de amor (1 Jo 4,19). Porque ela vê em cada ser humano, a imagem do próprio Deus vivo. No rosto das vítimas a Igreja identifica algo do resplendor da glória de Deus. Cristo, o Filho de Deus, com a Sua encarnação, num certo sentido, se uniu a cada mulher e homem.
O mistério pascal de Cristo - centro da liturgia da Igreja - é um mistério de libertação, que exorta e provoca continuamente a assumir a liberdade como tarefa. Karl Rahner dizia que “a Igreja deveria ser um bastião da liberdade; ensinar, viver e proteger a dignidade e, por extensão, a inviolabilidade do individuo: seu caráter de pessoa, seu destino eterno, sua liberdade”5.
Todo cristão é um abolicionista
Segundo Paulo, o evangelho pode resumir-se em uma palavra: liberdade. Jesus, o grande libertador, proclamou o Evangelho da Liberdade. É o que nos narram aos evangelistas. Sua pregação na sinagoga soa como proclamação: Nunca mais a escravidão, nunca mais o cativeiro, nunca mais a opressão: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos, e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4, 18-19).
Somos ungidos no batismo para sermos abolicionistas como Jesus. Ungidos para proclamar e defender a liberdade e levar a Boa Notícia da libertação para todas as vítimas da escravidão. Assumir esta missão divina com a consciência de que o alcance da escravidão vai além dos milhões de vitimas do tráfico e do trabalho escravo no mundo. É toda a sociedade que precisa ser libertada do jugo das estruturas de pecado enraizadas no pecado mortal da idolatria ao deus capital.
A interrupção do tráfico de seres humanos para fins de escravagistas é apontada pelo livro do Apocalipse como uma das causas da queda do império romano: “Caiu, caiu Babilônia, a grande” (Ap 18,2): Os mercadores da terra choram e se enlutam por ela, porque ninguém mais compra seus carregamentos de ouro, prata, linho e púrpura... vinho e óleo, flor de farinha e trigo, bois e ovelhas, cavalos e carros, escravos e prisioneiros (Ap 18, 11-13). Esta esperança cristã de uma liberdade plena deve acompanhar os compromissos de libertação das estruturas desumanizadoras que insistem em dominar a história da humanidade.
Os cristãos, agindo individualmente, ou coordenados em grupos, associações e organizações, devem saber propor-se como «um grande movimento empenhado na defesa da pessoa humana e na tutela da sua dignidade» (Centesimus annus, 3). Toda ação social deve inspirar-se no princípio fundamental da centralidade da pessoa humana (Mater et magistra, 453). A promoção da dignidade de toda pessoa, o bem mais precioso que o homem possui, é «a tarefa central e unificadora do serviço que a Igreja é chamada a prestar à humanidade» (Gaudium et spes, 91).
Resgatar e acolher a imagem viva de Deus refletida no rosto dos oprimidos: Eu estive preso (Mt 25, 35). Servir as vítimas é adorar a Deus em espírito e verdade, é o verdadeiro culto espiritual de que fala Isaías. É contemplar seu rosto no rosto de todo prisioneiro clamando por libertação (Mt 25, 35). Em todo ser humano está a imagem viva de Deus esperando para ser amado e acolhido como tal, pois “Cristo é tudo e está em todos” (Col 3, 11). No abraço da cruz se rompem todas as barreiras da violência (Ef 2,16). O sangue de Cristo nos torna próximos uns dos outros (Ef 2, 13).
CONCLUSÃO: CAUSA DAS VÍTIMAS, CAUSA DE DEUS
O combate ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas está contemplado de forma oficial, assumido definitivamente pela Igreja no Brasil: “O serviço à vida começa pelo respeito à dignidade da pessoa humana (CNBB, Diretrizes gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2011-2015, n.107). N. 111: “Atenção especial merecem também os migrantes forçados pela busca de trabalho e moradia...; c) as vítimas do tráfico de pessoas”. Que a Igreja jamais esconda sua face diante de tantos servos sofredores (Is 53,1) clamando por seus direitos e por justiça. Não podemos permitir que se quebre esta cana rachada e nem que se apague a mecha que ainda fumega... até que seja estabelecida a verdadeira justiça sobre a terra (Is 42, 2.4=Mt 12, 18-21).
A crueldade do escândalo do tráfico de pessoas e do trabalho escravo exige uma opção pastoral decidida e inegociável. Sua presença dolorosa e perturbadora é sacramento da presença de Deus clamando por libertação. Em última análise, significa muito mais do que uma ação pastoral. É um autêntico ato de religião. É fazer a vontade do Pai assim na terra como no céu. É profissão de fé levada às últimas conseqüências. É Deus, através de nós, amando e libertando as vítimas: “amai-as como Eu as amo” (Jo 13,34). Neste tipo de amor, já não somos apenas nós que amamos, mas é Deus amando em nós (Jo 17,21.26). Este gesto de humanidade revela a divindade que habita em nós. Enfrentar o tráfico de seres humanos é assumir a “causa de Deus”. Deus tanto amou o mundo que enviou seu Filho Único, a fim de que “o carrasco não triunfe sobre a vítima”.
Empenhar-se nesta causa de Deus, é combater o bom combate (2Tm 4,7), é ser uma carta de Cristo (2 Cor 3,3), é assumir o ministério da Justiça de Deus (2 Cor 3,9), é ser movidos pelo Espírito da liberdade, pois onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade.
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1 PAULO VI, Sínodo dos bispos: A Justiça no mundo, 1971. In: http://www.vatican.va/roman_curia/synod/documents/rc_synod_doc_19711130_giustizia_po.html
2 Puebla (1979) considera como situação de pecado o enorme abismo entre ricos e pobres (28) originada por estruturas sociais, políticas e econômicas injustas (1155) “que obstaculizam a passagem de situações menos humanas a mais humanas” (16). Puebla qualifica como estruturas de pecado aos fatores causadores de miséria, um autêntico escândalo para fé cristã e que, por isso, devem ser superadas (28). A Assembléia do Sínodo sobre Reconciliação e Penitência (1985) também trata do pecado social e o pecado estrutural.
3 LAFARGUE, Paul. A Religião do Capital. Rio de Janeiro: Achiamé, s/d (original de 1886), s/d, p. 16.
4 Para uma análise dos textos bíblicos sobre a idolatria veja-se o excelente estudo de Pablo RICHARD, Nossa luta é contra os ídolos, em: VV.AA. A luta dos deuses: os ídolos da opressão e a busca do Deus Libertador. São Paulo: Paulinas, 1985. 9-38.
5RAHNER, K. Dignidad y libertad del hombre, em: Escritos de Teología - vol. II, Madrid: Taurus, 278.
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Entrevista com a Procuradora Nilce Cunha - Procuradora Regional dos Direitos do Cidadão - TV Jangadeiro - Fortaleza, 21.8.2011
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